quarta-feira, 23 de outubro de 2013

TRAJETÓRIA DOS ARGUMENTOS SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS: DA MARCHA ZUMBI DOS PALMARES À CONFERÊNCIA DE DURBAN



As ações afirmativas atraem a atenção de estudiosos brasileiros desde a luta do Movimento Negro Unificado – MNU pela implantação desta política. Entre as correntes que reconhecem a desigualdade política e social associada à raça duas se destacam e alimentam o debate a respeito do tema. A diferença entre elas está no diagnóstico das causas desta desigualdade e, consequentemente, na postura frente à política pública de ações afirmativas. A primeira parte da ideia de que a desigualdade racial é fundamentalmente econômica (SOUZA, 2005). A segunda, de que a desigualdade resulta, principalmente, da discriminação racial (CAMPOS; DAFLON; FERES, 2010).

As Ciências Sociais têm valorizado as disputas argumentativas, a luta pela construção de justificativas plausíveis sobre o status quo, o funcionamento da sociedade, enfim, o ‘espírito’ do sistema vigente. Trata-se de um processo dinâmico, com incorporação de argumentos pelos adversários, reelaboração de significados e neutralização das críticas (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009). Mostra-se válido adotar esta perspectiva para análise de um evento circunscrito, como as disputas argumentativas sobre a política de descriminação positiva em período recente.



Acredita-se que houve uma imbricação entre o argumento de que a desigualdade racial tem uma base cultural e aquele que remete a desigualdade racial a causas econômicas. Esta junção de linhas argumentativas gerou uma justificativa que tende a dissolver a questão da desigualdade e também da identidade racial, no caldo dos conflitos de classe social. O argumento baseado na raça, paradoxalmente, manteve a ênfase no biológico, ou seja, no aspecto genético, apesar de as teorias científicas terem negado este viés e do impulso inicial do movimento social na direção da desconstrução deste tipo de justificativa. A sobreposição de argumentos indica uma complexa combinação entre permanência, incorporação e mudança nas justificativas mobilizadas pelos críticos das ações afirmativas.

O que foi feito mapeando o significado dos discursos de raça, classe social e economia presentes em artigos que tratam dos eventos da marcha Zumbi dos Palmares, Seminário em Brasília e da Conferência de Durban, a fim de diagnosticar possíveis alterações nas linhas argumentativas. A alteração nos argumentos ocorreu de modo a desvalorizar certas justificativas em detrimento de outras. A justificativa apresentada na Marcha Zumbi dos Palmares, por exemplo, sofreu modificações cujo efeito foi prejudicial à luta por ações afirmativas.

A MARCHA ZUMBI DOS PALMARES E SEUS ARGUMENTOS


Os argumentos a respeito das discriminações positivas emergiram na Marcha Zumbi dos Palmares, organizada em 1995 pelo Movimento Negro Unificado – MNU. Tal passeata trouxe à cena pública justificativas de tipo racial, cultural e econômica. O contexto era de avanço das lutas pelas políticas públicas de discriminação positiva. É possível observar a formulação de um contradiscurso referente à raça na Marcha Zumbi dos Palmares, pois o objetivo era desconstruir as teorias que trabalhavam o conceito de raça pelo viés biológico, presente nas correntes monogenista e poligenista. A primeira defendia que a humanidade era formada pelo gradiente que ia do menos ao mais perfeito. De acordo com tal vertente todos pertencem à mesma espécie, entretanto, a espécie comporta uma hierarquia entre as raças em função de supostas diferenças entre os níveis mentais. Ao passo que a teoria poligenista interpretava as raças como pertencentes a diferentes espécies, não redutíveis, portanto, a uma única humanidade. 

A desconstrução desse conceito ancorou crítica à concepção de raça do Conde Gobineau, que via negros e índios como pertencentes a raças inferiores. Como apontaram Costa, Pinhel e Silveira (2012, p. 102), na “passagem da noção de raça degenerada de conde Gobineau para a celebração da cultura brasileira realizada por Gilberto Freyre na sua vasta obra, o sincretismo cultural termina servindo de modelo à mestiçagem entre famílias de origens étnicas e sociais distintas”. 

Observa-se que a Marcha Zumbi dos Palmares possibilitou uma contraposição ao argumento biológico sobre diferença racial. A ênfase passou para o lado da diferença cultural entre as raças. O discurso cultural deve seu impulso inicial na obra Casa grande e Senzala de Gilberto Freyre. Adeptos dessa visão partem da hipótese de que no Brasil o problema não é racial em termos biológicos, uma vez que, diferente de outras nações, nosso país sempre conviveu com a mestiçagem e a miscigenação. 

A ideologia da mestiçagem e da miscigenação foi um constructo político incentivado pelo governo de Getúlio Vargas a fim de fundar a ideia de democracia racial moderna. A miscigenação visava o branqueamento da população negra brasileira (COSTA, 2001). De acordo com tal política em aproximadamente três décadas a raça negra seria extinta, uma vez que os casamentos inter-raciais produziriam, com o passar dos anos, um fenótipo predominantemente branco (ROCHA, 2009). Em complemento à miscigenação a ideia de mestiçagem correspondia ao sincretismo cultural, que era base do projeto de construção de uma cultura brasileira unificada (COSTA, PINHEL; SILVEIRA, 2012) e universal.

O argumento da mestiçagem e da miscigenação fortalece o discurso de que o problema racial no Brasil tem uma causa econômica; no limite, não seria um problema de conflito entre raças, mas, de classe, ou conflito entre classes. Segundo Jessé Souza (2005) os negros e os brancos pobres não conseguiram interiorizar os valores morais que emergiram na era moderna, demonstrando ser a variável explicativa da desigualdade histórica econômica, e não racial. Esse fato revela o processo de exclusão social dos brasileiros pobres de modo geral, independente da cor. E demonstra a necessidade de políticas públicas que reduzam a distância social entre pobres e ricos no acesso aos bens simbólicos que permitam a consolidação do projeto da nação moderna brasileira.

Após analisar os argumentos de raça, cultura e econômico na passeata Marcha Zumbi dos Palmares, observa-se que os dois últimos se ressignificaram, transformando-se no argumento de classe social. O argumento de raça na Marcha Zumbi dos Palmares apareceu como o fator que explica a desigualdade entre não brancos e brancos. Ele foi associado à desigualdade fenotípica, que contribui para a existência do preconceito de marca discutido no Seminário em Brasília. No entanto, o discurso de raça sofreu mutação ao logo do tempo e apareceu na Conferência de Durban com um viés geneticista.

Na Conferência de Durban predominou a linha argumentativa que entende o problema da desigualdade brasileira como econômico, e não racial (SOUZA, 2005).

O argumento da genética enfatizado por Sérgio Danilo Pena aponta que todos os brasileiros têm no seu genoma a contribuição das raças: negra, indígena e europeia. Por isso não há como definir quem é negro no Brasil. O discurso da genética mantém o argumento de raça, só que passa a mencionar as diferenças de genes e não as diferenciações fenotípicas que prevaleceram na Marcha Zumbi dos Palmares.

É por este motivo que podemos constatar que o argumento de cultura e economia se imbricaram para formar o discurso de classe social, ao passo que o discurso de raça permaneceu com significado biológico no sentido genético, apesar de as teorias cientificas o terem desconstruído. O que indica a permanência (conceito raça) e a modificação (transformação do discurso econômico e cultural no de classe social) de certos argumentos das ações afirmativas na passagem do evento da Marcha de Zumbi dos Palmares à Conferência de Durban.




Viritiana Aparecida de Almeida

Nelson Rosá de Souza


Confira o artigo integral no site oficial da  Revista Sociologias Plurais

terça-feira, 22 de outubro de 2013

NOTA SOBRE O FILME “O GRANDE DESAFIO”



Como mais uma edição do Cinegro, atividade realizada pelo Coletivo de estudantes negrxs da UFPR – Coletivo “Sou neguinh@”, assistimos e debatemos no sábado (19/10) ao filme “O grande desafio”. Um filme baseado em uma história real cujo protagonista é o professor Melvin Tolson (personagem de Denzel Washington) e ambientado em um contexto sociorracial do sul dos EUA de 1935.
Melvin Thompson é um professor excepcional e um amante das palavras. E para além da sala de aula ele é um cidadão estadunidense que a partir de suas convicções políticas comunistas, busca conscientizar a população para se unir e fazer valer seus direitos trabalhistas, embora isso possa atrapalhar sua carreira. Melvin Thompson identifica alunos da pequena Faculdade Wiley College do Texas, com um grande potencial e decide apostar neles para formar um grupo de debatedores, a fim de participar de concursos de debate no país, chegando a alcançar seu grande objetivo, enfrentar a tradição de Harvard diante de uma grande plateia.
Segue aqui um pouco do que assistimos, debatemos e aprendemos com esse filme. Em primeiro lugar foi consenso, entre os participantes no debate, que o filme apresenta muitas semelhanças, no que se refere aos efeitos sociais e psicológicos do racismo contra os negros, entre o contexto sociorracial dos Estados Unidos e o contexto brasileiro, a saber: a existência dos preconceitos, da discriminação (mais velada talvez) e a marginalização socioeconômica como resultado deste fenômeno social. Mesmo que o racismo naquele contexto tenha tido estratégias sociais diferentes do Brasil, como já é conhecido e difundido.
Contudo, o filme tem um significado afirmativo. Vale destacar o papel da educação e, particularmente, do trabalho do professor da pequena faculdade negra Wiley que se propõe preparar uma vencedora “equipe de debatedores” que, depois de concorrer com diversas universidades negras e brancas, vence a famosa universidade de Harvard. Mas a preparação dessa equipe não foi sem conflitos de várias ordens, já que em diversos momentos do filme no que se refere a questões emocionais e afetivas (traumas, ciúmes, traição amorosa, insegurança emocional, vulnerabilidade social) e políticas (dificuldade de aceitação da opção política do professor na organização de trabalhadores arrendatários) ameaçaram a coesão e desempenho da equipe de debatedores.
No debate que seguiu à exibição se evidenciou aspectos significativos. Destaca-se a discussão sobre a importância das igrejas protestantes, bem como das universidades negras, já nos anos 1930, como “espaços públicos” de educação e formação política dos negros estadunidenses; a solidariedade de grupo; a superação de dificuldades subjetivas como o medo; a preparação intelectual e emocional de negros e negras; a situação de submissão da mulher, bem como a indicação de nova atitude por parte de jovens mulheres negras (presença de uma mulher na equipe de debatedores); e a importância de modelos referenciais como fator de encorajamento dos jovens, entre outras coisas. Como se pode perceber tais evidências podem dar uma ideia da riqueza que foi assistir e discutir um filme coletivamente, pois a contribuição de diversos pontos de vistas e de saberes pôde proporcionar reflexões muito significativas.
Por fim, aprendemos a partir do filme e do debate que a preparação da “equipe de debatedores” representa uma bela e profunda metáfora do processo histórico-cultural dos negrxs estadunidenses. O filme mostra, no fundo, uma geração de lideranças negras na atividade de preparação de nova geração de lideranças negras que dará continuidade à luta pelos direitos civis dos negros naquele país.  Em última análise, o filme pode ser uma metáfora sobre nós também, negrxs brasileirxs em movimento, pois evidência os desafios sociais e psicológicos que precisaremos enfrentar se quisermos ser uma nova geração de lideranças negras que produza alguma consequência socialmente positiva para nós mesmos, como pessoas, para o conjunto de nosso grupo social e para o Brasil.

 José Antonio Marçal