quinta-feira, 3 de março de 2016

LGBTFOBIA COMO CAUSA DE VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO SISTEMA EDUCACIONAL


Megg Rayara Gomes de Oliveira[1]


INTRODUÇÃO

A homofobia é como o racismo, o anti-semitismo e
outras formas de intolerância na medida que procura
desumanizar um grande grupo de pessoas, negar a sua
humanidade, dignidade e personalidade.
(Coretta Scott King, esposa e parceira de luta
De Martin Luther King Jr.)



As cores rosa e azul representam de forma bastante específica, em várias culturas, o universo feminino e masculino respectivamente, a fim de informar, ainda antes mesmo de nascer, a maneira correta como cada criança deve ser tratada a fim de terem fortalecidos os elementos constitutivos de sua feminilidade ou masculinidade associados diretamente ao seu sexo biológico.
Rogério Diniz Junqueira (2009, p. 20)[2] usa os estudos de Elisabeth Badinter (1995) e Gláucia Eliane Silva de Almeida (1995) para afirmar que a masculinidade é considerada algo a ser duramente conquistado pelos indivíduos do sexo masculino, ao passo que a feminilidade é percebida como um componente natural da mulher. Já no trabalho de César Sabino, também estudado por Junqueira (2009), a masculinidade está associada a demonstrações de força, destemor e virilidade, construídas em contraposição a determinadas características femininas.
Assim, os códigos de conduta ensinados às crianças estabelecem que “o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens” (Berenice Alves de Melo BENTO, 2008, p. 25), premiando os normatizados com respeito e oportunidades, e castigando as diferenças com desprezos e obstáculos (William Siqueira PERES, 2009, p. 237), expondo de forma bastante objetiva que nas sociedades patriarcais não há outra possibilidade se não o ajustamento.
            É a família heteronormativa, ou seja, aquela definida pela prática do “sexo bem educado ou normatizado, isto é, as práticas heterossexuais, monogâmicas, consolidadas pelo matrimônio e reprodutivas” (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2009, p. 43) o modelo de organização social que deve ser preservado e, para tanto, as pessoas precisam ser ensinadas, desde muito cedo, a agir de modo que consigam reproduzi-lo.
Ao fugir dos padrões pré-estabelecidos determinados grupos de pessoas, como acontece com lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais (LGBT), são expostos/as a situações de discriminação e exclusão, podendo desenvolver estratégias de resistência que garantam seu direito de ser ou então buscam meios para uma adaptação que garanta ao menos sua sobrevivência, quase sempre caracterizados por discursos e atos de submissão e passividade (PERES, 2009, p.238).
No caso de crianças e adolescentes existe ainda o agravante de que podem ser vistas como portadoras de uma patologia que precisa e deve ser tratada, passando por experiências que evidenciam o quanto estão em desacordo com os padrões pré-estabelecido e como é necessário que alterem suas formas de pensar e agir para que possam adequar-se ao sexo anatômico e assim levar uma vida “normal”.
As cobranças impostas a elas partem de vários segmentos de nossa sociedade, como, por exemplo, vizinhos/as, igreja, escola e até mesmo da própria família, restando pouco ou nenhum espaço para que possam constituir-se como sujeitos de direito, já que de modo geral, a infância e a adolescência estão subalternizadas em relação ao mundo dos adultos.

1. Homossexualidade, homofobia e escola!

Imagem: www.unfpa.org.br
            A homossexualidade “sempre existiu, em todos os povos e nos mais diferentes status sociais” (Anderson Fontes Passos GUIMARÃES, 2009, p. 555) e é tão antiga quanto à humanidade, portanto não pode ser considerada antinatural ou anormal.
A noção de sexualidade normal, como toda norma, é um construto teórico, logo ideológico, tributário do imaginário sociocultural no qual ela emerge. A partir daí, toda forma de sexualidade que não se encaixe nesse imaginário é tida como desviante ou patológica (Paulo Roberto CECARELLI, 2000). Uma das estratégias utilizadas para determinar as fronteiras entre sexualidade normal e desviante foi estabelecer que as práticas sexuais devessem ter uma finalidade reprodutiva, considerando a partir de então, as relações afetivo/sexuais entre pessoas do mesmo sexo, ora como pecado, ora como crime e, na maior parte do século XX, como patologia[3]. Diante dela, a homossexualidade, e em contraposição a ela, a identidade hegemônica heterossexual se declara e se sustenta (Guacira Lopes LOURO, p. 31,1999).
Visões deturpadas em relação a homossexualidade ainda ecoam por diversos setores de nossa sociedade, como a escola, por exemplo, se constituindo em um espaço “de opressão, discriminação e preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT” (JUNQUEIRA, 2009, p. 15) que vivenciam de maneiras distintas situações “vulneradoras de internalização da homofobia[4]” (JUNQUEIRA, 2009, p. 15).
Esse quadro resulta em uma repressão sexual direta e explícita dirigida a estudantes LGBT, expressa por meio de um conjunto amplo de interdições, como discursos, ideias, representações negativas, censuras, que “definem e regulam o permitido, distinguindo o legítimo do ilegítimo, o dizível do indizível, delimitando, construindo e hierarquizando seus campos” (JUNQUEIRA, 2009, p. 16).
Assim, algumas representações sociais acabam sendo incorporadas como regras no cotidiano das organizações escolares reforçando o preconceito e conduzindo a estigmatização desses/as estudantes. Subjetividades marginais os colocam em um lugar diferente, subjugados, reduzindo-os a pessoas inferiores, desacreditadas (Nadia Patrícia NOVENA, 2004, p. 176-77).

2. Lesbianidade e estupro corretivo.

Além de vivenciarem situações de discriminação homofóbicas similares as enfrentadas por gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais, mulheres lésbicas ainda convivem com outras, como o machismo e o sexismo, que atuam diretamente nos processos de atualização das hierarquias baseadas no gênero.
O Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012 (2014) informa que em 2011 das vítimas de violência homofóbica no país 34,5% eram de mulheres lésbicas. Em 2012 esse número subiu para 37,59%, sendo que a maioria das agressões, 58,90 dos casos, foi cometida por conhecidos, dos quais 38,63%, aconteceram dentro de casa. Dentre as formas mais recorrentes de violência as vítimas denunciam, por ordem de frequência, a violência psicológica, física e sexual.
Embora o estupro esteja entre as maiores formas de violência que atingem as mulheres no mundo inteiro, o estupro corretivo, ou seja, “uma prática criminosa na qual o agressor acredita que poderá mudar a orientação sexual da lésbica através da violência sexual” (Ticiane FIGUEIRÊDO, 2013, s.p.) é uma realidade específica, vivenciada apenas por mulheres que expressam uma orientação sexual homossexual.
Os números dessa violência não são exatos, mas de acordo com a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), aproximadamente 6% dos estupros envolvem mulheres lésbicas, “um castigo pela negação da mulher a masculinidade do homem” (Roselaine DIAS apud FIGUERÊDO), com faixa etária variando entre 16 e 23 anos.

3. Travestis, Mulheres e homens transexuais e educação.

As orientações curriculares nacionais “trazem conceitos e temáticas sobre a diversidade sexual para os trabalhos e currículos das escolas” (Adriana SALES; Leonardo Lemos de SOUZA, 2012, p. 29), mas silenciam a respeito das pessoas travestis[5]. A travesti e também transexuais (homens e mulheres), sob “a perspectiva das relações entre gênero e corpo subverte o comum e ordinário acerca das diferenças de gênero e sexuais” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) e o gênero não é mais determinado pelo corpo, mas a partir desse corpo “que agora é bem menos biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) onde elementos dos gêneros e dos sexos ditos masculinos e femininos encontram-se intersectados de maneira contínua ou não.
A dificuldade de inteligibilidade desses corpos torna-se uma justificativa recorrente para os processos de violação de direitos decorrentes da transfobia[6], inclusive na escola. O fato que é a escola, que em tese deveria ser um lugar de respeito incondicional, tem apresentado dificuldades no trato com travestis, mulheres e homens transexuais, principalmente por adotar posturas que a transforma em “escola-polícia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por tecnologias sofisticadas de poder centradas na disciplina dos corpos e na regulação dos prazeres” (PERES, 2009, p. 249). O autor lembra ainda que a intensidade da discriminação e do desrespeito nesse espaço conduz invariavelmente ao “abandono dos estudos ou expulsão da escola, o que consequentemente contribui para a marginalização” (PERES, 2009, p. 245).
Assim, o abandono da escola constitui-se em uma possibilidade muito concreta, tendo em vista a interferência que essas situações produziram no rendimento escolar dessas pessoas. “Talvez seja produtivo pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a escola é que as/os abandonam (Dayana  Brunetto Carlin dos SANTOS, 2010, p. 176).

4. Nome Social.

As experiências que subvertem as normas de gênero potencializam “o nome como uma questão importante, bem como a sua representação para sujeitos transexuais e travestis” (SANTOS, 2010, p. 156), já que possibilita à adequação do nome a identidade de gênero. Uma identidade que toma forma na materialização de um corpo construído, muitas vezes, com a ajuda de cirurgias plásticas, colocação de próteses, tratamento hormonal, etc.
A portaria Nº 1.612 de 18 de novembro de 2011, no Artigo 1º, assegura às travestis, mulheres e homens transexuais que não fizeram a retificação do pré-nome em seus documentos, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério da educação em todo o território nacional.
Essa portaria se torna vital no processo de reinserção e manutenção dessas pessoas no ambiente escolar, pois procura impedir que sejam nomeados/as pelo seu nome civil, situação que, de acordo com eles/as “suscita sentimentos de dor, raiva, sofrimento e revolta” (SANTOS, 2010, p. 157).

5. Evasão escolar e exploração sexual de travestis e mulheres transexuais

            Fora do sistema educacional, travestis e mulheres transexuais, dificilmente conseguem inserção no mercado formal de trabalho, tornando-se vítimas potenciais de abuso e exploração sexual comercial em todas as regiões do país.
            O processo de aliciamento envolve também estratégias de resignificação da identidade feminina em um corpo com uma genitália masculina, principalmente das travestis, “percebidas com a sexualidade exacerbada, desregrada e problemática” (Alan de Loiola ALVES, 2011, p. 4), sendo responsabilizadas inclusive pela exploração da qual são vítimas. Essa situação pode ser observada em discursos pautados no censo comum que procuram descaracterizá-las “tirando o caráter de pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos” (ALVES, 2011, p. 4).
            Além da exploração sexual marcada por horas intermináveis de trabalho e pela cobrança abusiva de aluguéis, pedágios e multas, essas “meninas” são expostas a outros tipos de violência, como a aplicação improvisada de silicone industrial para criar ou aumentar seios, coxas e glúteos; aplicação ou ingestão de hormônios femininos sem acompanhamento médico; e a “violência praticada pelos policiais, apontando que são vítimas de agressões físicas e de furtos dos pertences, especialmente celulares e o dinheiro conquistado com o programa sexual” (ALVES, 2011, p. 07). De acordo com o Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, de todos os homicídios cometidos contra pessoas LGBT, 40% das vítimas era de travestis (2014, p. 48).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

            Diante de uma situação que expõe milhares de crianças, adolescentes e jovens LGBT, brancos/as e negros/as, a situações de violência cotidiana, é imperativo e urgente que a sociedade brasileira não se furte a responsabilidade de colocar em debate tais questões. Nesse processo é fundamental a participação da escola, que reveja suas diretrizes curriculares e projetos político-pedagógicos a fim de promover e garantir “um enfrentamento efetivo da homofobia/travestifobia/transfobia e dos processos de estigmatização” (PERES, 2009, p. 262).


REFERÊNCIAS

ALVES, Alan de Loiola. Travinha na quinta: a exploração sexual comercial de adolescentes travestis. Disponível em: <http://www.itaporanga.net/genero/3/10/14.pdf>. Acesso em 02 mai. 2014.
BENTO, Berenice Alves de Melo. O que é transexualidade? São Paulo: Brasiliense, 2008 (Primeiros Passos n. 328).
BRASIL, Secretaria de Direitos Humanos. Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília, 2014.
CECARELLI, Paulo Roberto. A invenção da homossexualidade. Revista Bagoas, Natal - RN, n. 2, 2008, 71-93.
CÉSAR, Maria Rita de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma Epistemologia, Educar em Revista, n. 35, set.- dez. 2009, p. 37 – 51.
FIGUERÊDO, Ticiane. Lésbicas: invisibilidades e violências. Posted on 28 ago. 2013. Disponível em: < http://blogueirasfeministas.com/2013/08/lesbicas-invisibilidades-e-violencias/>. Acesso em 26 abr. 2014.
GUIMARÃES, Anderson Fontes Passos. O desafio de “tornar-se” um homem homossexual: um exercício de construção de identidade. Revista Temas em Psicologia, v. 17, n. 2, 2009, p. 553 – 567.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogia da Sexualidade. In:____________. (Org). O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
NOVENA, Nadia Patrícia. A sexualidade na organização escolar: narrativas do silêncio. Tese (Doutorado em sociologia). Universidade Federal de Pernambuco, 2004.
PERES, William Siqueira. Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transexuais, transgêneros e a escola brasileira. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
SALES, Adriana; Leonardo Lemos de SOUZA. Narrativas de alunas travestis: representações e crenças sobre a escola. In: SOUZA, Leonardo Lemos de; SALGADO, Raquel Gonçalves (Org.). Infância e juventude no contexto brasileiro: gêneros e sexualidades. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2012.
SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em educação). Universidade Federal do Paraná, 2010.




[1] Licenciada em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História da Arte Pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil; Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), “por defender uma educação não-sexista, [...] além de utilizar o gênero feminino e masculino para nos referir às pessoas em geral, adotamos também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevemos seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]”.
[3] Afirma-se na Resolução Nº 1/99 do Conselho Federal de Psicologia: “Considerando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. A homossexualidade, assim como a heterossexualidade, são manifestações da sexualidade humana resultantes da "história da sexualidade" de cada indivíduo.
[4]Entendese homofobia como preconceito ou discriminação (e demais violências daí decorrentes) contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero presumidas. (Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, 2014, p. 10).
[5] Embora Sales e Souza especifiquem em sua pesquisa a questão da pessoa travesti, estendemos essa situação à mulheres e homens transexuais.
[6] Medo, nojo, vergonha de se relacionar com travestis e transexuais (PERES, 2009, p. 245).