LGBTFOBIA
COMO CAUSA DE VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO SISTEMA EDUCACIONAL
Megg Rayara Gomes de Oliveira[1]
INTRODUÇÃO
A
homofobia é como o racismo, o anti-semitismo e
outras
formas de intolerância na medida que procura
desumanizar
um grande grupo de pessoas, negar a sua
humanidade,
dignidade e personalidade.
(Coretta
Scott King, esposa e parceira de luta
De Martin Luther King Jr.)
As cores rosa e azul
representam de forma bastante específica, em várias culturas, o universo feminino
e masculino respectivamente, a fim de informar, ainda antes mesmo de nascer, a
maneira correta como cada criança deve ser tratada a fim de terem fortalecidos
os elementos constitutivos de sua feminilidade ou masculinidade associados
diretamente ao seu sexo biológico.
Rogério Diniz Junqueira
(2009, p. 20)[2]
usa os estudos de Elisabeth Badinter (1995) e Gláucia Eliane Silva de Almeida
(1995) para afirmar que a masculinidade é considerada algo a ser duramente
conquistado pelos indivíduos do sexo masculino, ao passo que a feminilidade é
percebida como um componente natural da mulher. Já no trabalho de César Sabino,
também estudado por Junqueira (2009), a masculinidade está associada a
demonstrações de força, destemor e virilidade, construídas em contraposição a
determinadas características femininas.
Assim, os códigos de
conduta ensinados às crianças estabelecem que “o único lugar habitável para o
feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens”
(Berenice Alves de Melo BENTO, 2008, p. 25), premiando os normatizados com
respeito e oportunidades, e castigando as diferenças com desprezos e obstáculos
(William Siqueira PERES, 2009, p. 237), expondo de forma bastante objetiva que
nas sociedades patriarcais não há outra possibilidade se não o ajustamento.
É
a família heteronormativa, ou seja, aquela definida pela prática do “sexo bem
educado ou normatizado, isto é, as práticas heterossexuais, monogâmicas,
consolidadas pelo matrimônio e reprodutivas” (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2009,
p. 43) o modelo de organização social que deve ser preservado e, para tanto, as
pessoas precisam ser ensinadas, desde muito cedo, a agir de modo que consigam
reproduzi-lo.
Ao fugir dos padrões
pré-estabelecidos determinados grupos de pessoas, como acontece com lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais (LGBT), são
expostos/as a situações de discriminação e exclusão, podendo desenvolver
estratégias de resistência que garantam seu direito de ser ou então buscam
meios para uma adaptação que garanta ao menos sua sobrevivência, quase sempre
caracterizados por discursos e atos de submissão e passividade (PERES, 2009,
p.238).
No caso de crianças e
adolescentes existe ainda o agravante de que podem ser vistas como portadoras
de uma patologia que precisa e deve ser tratada, passando por experiências que
evidenciam o quanto estão em desacordo com os padrões pré-estabelecido e como é
necessário que alterem suas formas de pensar e agir para que possam adequar-se
ao sexo anatômico e assim levar uma vida “normal”.
As
cobranças impostas a elas partem de vários segmentos de nossa sociedade, como,
por exemplo, vizinhos/as, igreja, escola e até mesmo da própria família,
restando pouco ou nenhum espaço para que possam constituir-se como sujeitos de direito,
já que de modo geral, a infância e a adolescência estão subalternizadas em
relação ao mundo dos adultos.
1. Homossexualidade, homofobia e escola!
Imagem: www.unfpa.org.br |
A
homossexualidade “sempre existiu, em todos os povos e nos mais diferentes
status sociais” (Anderson Fontes Passos GUIMARÃES, 2009, p. 555) e é tão antiga
quanto à humanidade, portanto não pode ser considerada antinatural ou anormal.
A noção de sexualidade
normal, como toda norma, é um construto teórico, logo ideológico, tributário do
imaginário sociocultural no qual ela emerge. A partir daí, toda forma de
sexualidade que não se encaixe nesse imaginário é tida como desviante ou
patológica (Paulo Roberto CECARELLI, 2000). Uma das estratégias utilizadas para
determinar as fronteiras entre sexualidade normal e desviante foi estabelecer
que as práticas sexuais devessem ter uma finalidade reprodutiva,
considerando a partir de então, as relações afetivo/sexuais entre
pessoas do mesmo sexo, ora como pecado, ora como crime e, na maior parte do
século XX, como patologia[3]. Diante
dela, a homossexualidade, e em contraposição a ela, a identidade hegemônica heterossexual
se declara e se sustenta (Guacira Lopes LOURO, p. 31,1999).
Visões deturpadas em relação a homossexualidade
ainda ecoam por diversos setores de nossa sociedade, como a escola, por
exemplo, se constituindo em um espaço “de opressão, discriminação e
preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de
violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT” (JUNQUEIRA,
2009, p. 15) que vivenciam de maneiras distintas situações “vulneradoras de
internalização da homofobia[4]”
(JUNQUEIRA, 2009, p. 15).
Esse quadro resulta em uma repressão sexual
direta e explícita dirigida a estudantes LGBT, expressa por meio de um conjunto
amplo de interdições, como discursos, ideias, representações negativas,
censuras, que “definem e regulam o permitido, distinguindo o legítimo do
ilegítimo, o dizível do indizível, delimitando, construindo e hierarquizando
seus campos” (JUNQUEIRA, 2009, p. 16).
Assim, algumas
representações sociais acabam sendo incorporadas como regras no cotidiano das
organizações escolares reforçando o preconceito e conduzindo a estigmatização
desses/as estudantes. Subjetividades marginais os colocam em um lugar
diferente, subjugados, reduzindo-os a pessoas inferiores, desacreditadas (Nadia
Patrícia NOVENA, 2004, p. 176-77).
2. Lesbianidade e estupro corretivo.
Além de
vivenciarem situações de discriminação homofóbicas similares as enfrentadas por
gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais, mulheres lésbicas
ainda convivem com outras, como o machismo e o sexismo, que atuam diretamente
nos processos de atualização das hierarquias baseadas no gênero.
O
Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012 (2014) informa que
em 2011
das vítimas de violência homofóbica no país 34,5% eram de mulheres lésbicas.
Em 2012 esse número subiu para 37,59%, sendo que a maioria das agressões, 58,90
dos casos, foi cometida por conhecidos, dos quais 38,63%, aconteceram dentro de
casa. Dentre as formas mais recorrentes de violência as vítimas denunciam, por
ordem de frequência, a violência psicológica, física e sexual.
Embora o estupro esteja entre as maiores formas de
violência que atingem as mulheres no mundo inteiro, o estupro corretivo, ou
seja, “uma prática criminosa na qual o agressor acredita
que poderá mudar a orientação sexual da lésbica através da violência
sexual” (Ticiane FIGUEIRÊDO, 2013, s.p.) é uma realidade específica, vivenciada
apenas por mulheres que expressam uma orientação sexual homossexual.
Os
números dessa violência não são exatos, mas de acordo com a Liga Brasileira de
Lésbicas (LBL), aproximadamente 6% dos estupros envolvem mulheres lésbicas, “um
castigo pela negação da mulher a masculinidade do homem” (Roselaine DIAS apud FIGUERÊDO), com faixa etária
variando entre 16 e 23 anos.
3.
Travestis, Mulheres e homens transexuais e educação.
As orientações curriculares nacionais “trazem
conceitos e temáticas sobre a diversidade sexual para os trabalhos e currículos
das escolas” (Adriana SALES; Leonardo Lemos de SOUZA, 2012, p. 29), mas
silenciam a respeito das pessoas travestis[5]. A
travesti e também transexuais (homens e mulheres), sob “a perspectiva das
relações entre gênero e corpo subverte o comum e ordinário acerca das
diferenças de gênero e sexuais” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) e o gênero não é
mais determinado pelo corpo, mas a partir desse corpo “que agora é bem menos
biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) onde elementos dos
gêneros e dos sexos ditos masculinos e femininos encontram-se intersectados de
maneira contínua ou não.
A dificuldade de inteligibilidade desses corpos
torna-se uma justificativa recorrente para os processos de violação de direitos
decorrentes da transfobia[6],
inclusive na escola. O fato que é a escola, que em tese deveria ser um lugar de
respeito incondicional, tem apresentado dificuldades no trato com travestis,
mulheres e homens transexuais, principalmente por adotar posturas que a
transforma em “escola-polícia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por
tecnologias sofisticadas de poder centradas na disciplina dos
corpos e na regulação dos prazeres” (PERES, 2009, p. 249). O autor
lembra ainda que a intensidade da discriminação e do desrespeito nesse espaço
conduz invariavelmente ao “abandono dos estudos ou expulsão da escola, o que
consequentemente contribui para a marginalização” (PERES, 2009, p. 245).
Assim, o abandono da escola constitui-se em uma
possibilidade muito concreta, tendo em vista a interferência que essas
situações produziram no rendimento escolar dessas pessoas. “Talvez seja
produtivo pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola,
mas a escola é que as/os abandonam (Dayana
Brunetto Carlin dos SANTOS, 2010, p. 176).
4. Nome Social.
As experiências que
subvertem as normas de gênero potencializam “o nome como uma questão
importante, bem como a sua representação para sujeitos transexuais e travestis”
(SANTOS, 2010, p. 156), já que possibilita à adequação do nome a identidade de
gênero. Uma identidade que toma forma na materialização de um corpo construído,
muitas vezes, com a ajuda de cirurgias plásticas, colocação de próteses,
tratamento hormonal, etc.
A portaria Nº 1.612 de 18
de novembro de 2011, no Artigo 1º, assegura às travestis, mulheres e homens
transexuais que não fizeram a retificação do pré-nome em seus documentos, o
direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no
âmbito do Ministério da educação em todo o território nacional.
Essa
portaria se torna vital no processo de reinserção e manutenção dessas pessoas
no ambiente escolar, pois procura impedir que sejam nomeados/as pelo seu nome
civil, situação que, de acordo com eles/as “suscita sentimentos de dor, raiva,
sofrimento e revolta” (SANTOS, 2010, p. 157).
5.
Evasão escolar e exploração sexual de travestis e mulheres transexuais
Fora
do sistema educacional, travestis e mulheres transexuais, dificilmente
conseguem inserção no mercado formal de trabalho, tornando-se vítimas
potenciais de abuso e exploração sexual comercial em todas as regiões do país.
O processo de aliciamento envolve
também estratégias de resignificação da identidade feminina em um corpo com uma
genitália masculina, principalmente das travestis, “percebidas com a
sexualidade exacerbada, desregrada e problemática” (Alan de Loiola ALVES, 2011,
p. 4), sendo responsabilizadas inclusive pela exploração da qual são vítimas.
Essa situação pode ser observada em discursos pautados no censo comum que procuram
descaracterizá-las “tirando o caráter de pessoas em desenvolvimento e sujeitos
de direitos” (ALVES, 2011, p. 4).
Além
da exploração sexual marcada por horas intermináveis de trabalho e pela
cobrança abusiva de aluguéis, pedágios e multas, essas “meninas” são expostas a
outros tipos de violência, como a aplicação improvisada de silicone industrial
para criar ou aumentar seios, coxas e glúteos; aplicação ou ingestão de
hormônios femininos sem acompanhamento médico; e a “violência praticada pelos
policiais, apontando que são vítimas de agressões físicas e de furtos dos
pertences, especialmente celulares e o dinheiro conquistado com o programa
sexual” (ALVES, 2011, p. 07).
De acordo com o Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, de
todos os homicídios cometidos contra pessoas LGBT, 40% das vítimas era de
travestis (2014, p. 48).
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
Diante
de uma situação que expõe milhares de crianças, adolescentes e jovens LGBT,
brancos/as e negros/as, a situações de violência cotidiana, é imperativo e
urgente que a sociedade brasileira não se furte a responsabilidade de colocar
em debate tais questões. Nesse processo é fundamental a participação da escola,
que reveja suas diretrizes curriculares e projetos político-pedagógicos a fim
de promover e garantir “um enfrentamento efetivo da
homofobia/travestifobia/transfobia e dos processos de estigmatização” (PERES,
2009, p. 262).
REFERÊNCIAS
ALVES,
Alan de Loiola. Travinha
na quinta: a exploração sexual comercial de adolescentes travestis. Disponível
em: <http://www.itaporanga.net/genero/3/10/14.pdf>. Acesso em 02
mai. 2014.
BENTO, Berenice
Alves de Melo. O que é transexualidade?
São Paulo: Brasiliense, 2008 (Primeiros Passos n. 328).
BRASIL, Secretaria
de Direitos Humanos. Relatório Sobre
Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília, 2014.
CECARELLI, Paulo
Roberto. A invenção da homossexualidade. Revista
Bagoas, Natal - RN, n. 2, 2008, 71-93.
CÉSAR, Maria Rita
de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma Epistemologia, Educar em Revista, n. 35, set.- dez.
2009, p. 37 – 51.
FIGUERÊDO,
Ticiane. Lésbicas: invisibilidades e
violências. Posted on 28 ago.
2013. Disponível em: < http://blogueirasfeministas.com/2013/08/lesbicas-invisibilidades-e-violencias/>. Acesso em 26 abr. 2014.
GUIMARÃES,
Anderson Fontes Passos. O desafio de “tornar-se” um homem homossexual: um
exercício de construção de identidade. Revista
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Siqueira. Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transexuais, transgêneros e
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SALES, Adriana;
Leonardo Lemos de SOUZA. Narrativas de alunas travestis: representações e
crenças sobre a escola. In: SOUZA, Leonardo Lemos de; SALGADO, Raquel Gonçalves
(Org.). Infância e juventude no contexto
brasileiro: gêneros e sexualidades. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2012.
SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Cartografias da
transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado
em educação). Universidade Federal do Paraná, 2010.
[1] Licenciada em Desenho pela Escola de Música e
Belas Artes do Paraná; Especialista em História da Arte Pela Escola de Música e
Belas Artes do Paraná; Especialista em História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade
Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil; Mestra em Educação pela Universidade Federal do
Paraná; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Como propõe Débora Cristina
de Araujo (2010, p. 14, nota 3), “por defender uma educação não-sexista, [...]
além de utilizar o gênero feminino e masculino para nos referir às pessoas em
geral, adotamos também outra postura originada dos Estudos Feministas: o
destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a
citação de um/a autor/a, transcrevemos seu nome completo para a identificação
do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às
pesquisadoras e estudiosas [...]”.
[3] Afirma-se na Resolução
Nº 1/99 do Conselho Federal de Psicologia: “Considerando que a homossexualidade
não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. A homossexualidade, assim
como a heterossexualidade, são manifestações da sexualidade humana resultantes
da "história da sexualidade" de cada indivíduo.
[4]Entende‐se
homofobia como preconceito ou discriminação (e demais violências daí decorrentes)
contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero
presumidas. (Relatório Sobre Violência Homofóbica no
Brasil: ano de 2012, 2014, p. 10).
[5] Embora Sales e Souza especifiquem
em sua pesquisa a questão da pessoa travesti, estendemos essa situação à
mulheres e homens transexuais.
[6] Medo, nojo, vergonha de se
relacionar com travestis e transexuais (PERES, 2009, p. 245).