quinta-feira, 3 de março de 2016

LGBTFOBIA COMO CAUSA DE VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NO SISTEMA EDUCACIONAL


Megg Rayara Gomes de Oliveira[1]


INTRODUÇÃO

A homofobia é como o racismo, o anti-semitismo e
outras formas de intolerância na medida que procura
desumanizar um grande grupo de pessoas, negar a sua
humanidade, dignidade e personalidade.
(Coretta Scott King, esposa e parceira de luta
De Martin Luther King Jr.)



As cores rosa e azul representam de forma bastante específica, em várias culturas, o universo feminino e masculino respectivamente, a fim de informar, ainda antes mesmo de nascer, a maneira correta como cada criança deve ser tratada a fim de terem fortalecidos os elementos constitutivos de sua feminilidade ou masculinidade associados diretamente ao seu sexo biológico.
Rogério Diniz Junqueira (2009, p. 20)[2] usa os estudos de Elisabeth Badinter (1995) e Gláucia Eliane Silva de Almeida (1995) para afirmar que a masculinidade é considerada algo a ser duramente conquistado pelos indivíduos do sexo masculino, ao passo que a feminilidade é percebida como um componente natural da mulher. Já no trabalho de César Sabino, também estudado por Junqueira (2009), a masculinidade está associada a demonstrações de força, destemor e virilidade, construídas em contraposição a determinadas características femininas.
Assim, os códigos de conduta ensinados às crianças estabelecem que “o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens” (Berenice Alves de Melo BENTO, 2008, p. 25), premiando os normatizados com respeito e oportunidades, e castigando as diferenças com desprezos e obstáculos (William Siqueira PERES, 2009, p. 237), expondo de forma bastante objetiva que nas sociedades patriarcais não há outra possibilidade se não o ajustamento.
            É a família heteronormativa, ou seja, aquela definida pela prática do “sexo bem educado ou normatizado, isto é, as práticas heterossexuais, monogâmicas, consolidadas pelo matrimônio e reprodutivas” (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2009, p. 43) o modelo de organização social que deve ser preservado e, para tanto, as pessoas precisam ser ensinadas, desde muito cedo, a agir de modo que consigam reproduzi-lo.
Ao fugir dos padrões pré-estabelecidos determinados grupos de pessoas, como acontece com lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais (LGBT), são expostos/as a situações de discriminação e exclusão, podendo desenvolver estratégias de resistência que garantam seu direito de ser ou então buscam meios para uma adaptação que garanta ao menos sua sobrevivência, quase sempre caracterizados por discursos e atos de submissão e passividade (PERES, 2009, p.238).
No caso de crianças e adolescentes existe ainda o agravante de que podem ser vistas como portadoras de uma patologia que precisa e deve ser tratada, passando por experiências que evidenciam o quanto estão em desacordo com os padrões pré-estabelecido e como é necessário que alterem suas formas de pensar e agir para que possam adequar-se ao sexo anatômico e assim levar uma vida “normal”.
As cobranças impostas a elas partem de vários segmentos de nossa sociedade, como, por exemplo, vizinhos/as, igreja, escola e até mesmo da própria família, restando pouco ou nenhum espaço para que possam constituir-se como sujeitos de direito, já que de modo geral, a infância e a adolescência estão subalternizadas em relação ao mundo dos adultos.

1. Homossexualidade, homofobia e escola!

Imagem: www.unfpa.org.br
            A homossexualidade “sempre existiu, em todos os povos e nos mais diferentes status sociais” (Anderson Fontes Passos GUIMARÃES, 2009, p. 555) e é tão antiga quanto à humanidade, portanto não pode ser considerada antinatural ou anormal.
A noção de sexualidade normal, como toda norma, é um construto teórico, logo ideológico, tributário do imaginário sociocultural no qual ela emerge. A partir daí, toda forma de sexualidade que não se encaixe nesse imaginário é tida como desviante ou patológica (Paulo Roberto CECARELLI, 2000). Uma das estratégias utilizadas para determinar as fronteiras entre sexualidade normal e desviante foi estabelecer que as práticas sexuais devessem ter uma finalidade reprodutiva, considerando a partir de então, as relações afetivo/sexuais entre pessoas do mesmo sexo, ora como pecado, ora como crime e, na maior parte do século XX, como patologia[3]. Diante dela, a homossexualidade, e em contraposição a ela, a identidade hegemônica heterossexual se declara e se sustenta (Guacira Lopes LOURO, p. 31,1999).
Visões deturpadas em relação a homossexualidade ainda ecoam por diversos setores de nossa sociedade, como a escola, por exemplo, se constituindo em um espaço “de opressão, discriminação e preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT” (JUNQUEIRA, 2009, p. 15) que vivenciam de maneiras distintas situações “vulneradoras de internalização da homofobia[4]” (JUNQUEIRA, 2009, p. 15).
Esse quadro resulta em uma repressão sexual direta e explícita dirigida a estudantes LGBT, expressa por meio de um conjunto amplo de interdições, como discursos, ideias, representações negativas, censuras, que “definem e regulam o permitido, distinguindo o legítimo do ilegítimo, o dizível do indizível, delimitando, construindo e hierarquizando seus campos” (JUNQUEIRA, 2009, p. 16).
Assim, algumas representações sociais acabam sendo incorporadas como regras no cotidiano das organizações escolares reforçando o preconceito e conduzindo a estigmatização desses/as estudantes. Subjetividades marginais os colocam em um lugar diferente, subjugados, reduzindo-os a pessoas inferiores, desacreditadas (Nadia Patrícia NOVENA, 2004, p. 176-77).

2. Lesbianidade e estupro corretivo.

Além de vivenciarem situações de discriminação homofóbicas similares as enfrentadas por gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens transexuais, mulheres lésbicas ainda convivem com outras, como o machismo e o sexismo, que atuam diretamente nos processos de atualização das hierarquias baseadas no gênero.
O Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012 (2014) informa que em 2011 das vítimas de violência homofóbica no país 34,5% eram de mulheres lésbicas. Em 2012 esse número subiu para 37,59%, sendo que a maioria das agressões, 58,90 dos casos, foi cometida por conhecidos, dos quais 38,63%, aconteceram dentro de casa. Dentre as formas mais recorrentes de violência as vítimas denunciam, por ordem de frequência, a violência psicológica, física e sexual.
Embora o estupro esteja entre as maiores formas de violência que atingem as mulheres no mundo inteiro, o estupro corretivo, ou seja, “uma prática criminosa na qual o agressor acredita que poderá mudar a orientação sexual da lésbica através da violência sexual” (Ticiane FIGUEIRÊDO, 2013, s.p.) é uma realidade específica, vivenciada apenas por mulheres que expressam uma orientação sexual homossexual.
Os números dessa violência não são exatos, mas de acordo com a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), aproximadamente 6% dos estupros envolvem mulheres lésbicas, “um castigo pela negação da mulher a masculinidade do homem” (Roselaine DIAS apud FIGUERÊDO), com faixa etária variando entre 16 e 23 anos.

3. Travestis, Mulheres e homens transexuais e educação.

As orientações curriculares nacionais “trazem conceitos e temáticas sobre a diversidade sexual para os trabalhos e currículos das escolas” (Adriana SALES; Leonardo Lemos de SOUZA, 2012, p. 29), mas silenciam a respeito das pessoas travestis[5]. A travesti e também transexuais (homens e mulheres), sob “a perspectiva das relações entre gênero e corpo subverte o comum e ordinário acerca das diferenças de gênero e sexuais” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) e o gênero não é mais determinado pelo corpo, mas a partir desse corpo “que agora é bem menos biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) onde elementos dos gêneros e dos sexos ditos masculinos e femininos encontram-se intersectados de maneira contínua ou não.
A dificuldade de inteligibilidade desses corpos torna-se uma justificativa recorrente para os processos de violação de direitos decorrentes da transfobia[6], inclusive na escola. O fato que é a escola, que em tese deveria ser um lugar de respeito incondicional, tem apresentado dificuldades no trato com travestis, mulheres e homens transexuais, principalmente por adotar posturas que a transforma em “escola-polícia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por tecnologias sofisticadas de poder centradas na disciplina dos corpos e na regulação dos prazeres” (PERES, 2009, p. 249). O autor lembra ainda que a intensidade da discriminação e do desrespeito nesse espaço conduz invariavelmente ao “abandono dos estudos ou expulsão da escola, o que consequentemente contribui para a marginalização” (PERES, 2009, p. 245).
Assim, o abandono da escola constitui-se em uma possibilidade muito concreta, tendo em vista a interferência que essas situações produziram no rendimento escolar dessas pessoas. “Talvez seja produtivo pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a escola é que as/os abandonam (Dayana  Brunetto Carlin dos SANTOS, 2010, p. 176).

4. Nome Social.

As experiências que subvertem as normas de gênero potencializam “o nome como uma questão importante, bem como a sua representação para sujeitos transexuais e travestis” (SANTOS, 2010, p. 156), já que possibilita à adequação do nome a identidade de gênero. Uma identidade que toma forma na materialização de um corpo construído, muitas vezes, com a ajuda de cirurgias plásticas, colocação de próteses, tratamento hormonal, etc.
A portaria Nº 1.612 de 18 de novembro de 2011, no Artigo 1º, assegura às travestis, mulheres e homens transexuais que não fizeram a retificação do pré-nome em seus documentos, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério da educação em todo o território nacional.
Essa portaria se torna vital no processo de reinserção e manutenção dessas pessoas no ambiente escolar, pois procura impedir que sejam nomeados/as pelo seu nome civil, situação que, de acordo com eles/as “suscita sentimentos de dor, raiva, sofrimento e revolta” (SANTOS, 2010, p. 157).

5. Evasão escolar e exploração sexual de travestis e mulheres transexuais

            Fora do sistema educacional, travestis e mulheres transexuais, dificilmente conseguem inserção no mercado formal de trabalho, tornando-se vítimas potenciais de abuso e exploração sexual comercial em todas as regiões do país.
            O processo de aliciamento envolve também estratégias de resignificação da identidade feminina em um corpo com uma genitália masculina, principalmente das travestis, “percebidas com a sexualidade exacerbada, desregrada e problemática” (Alan de Loiola ALVES, 2011, p. 4), sendo responsabilizadas inclusive pela exploração da qual são vítimas. Essa situação pode ser observada em discursos pautados no censo comum que procuram descaracterizá-las “tirando o caráter de pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos” (ALVES, 2011, p. 4).
            Além da exploração sexual marcada por horas intermináveis de trabalho e pela cobrança abusiva de aluguéis, pedágios e multas, essas “meninas” são expostas a outros tipos de violência, como a aplicação improvisada de silicone industrial para criar ou aumentar seios, coxas e glúteos; aplicação ou ingestão de hormônios femininos sem acompanhamento médico; e a “violência praticada pelos policiais, apontando que são vítimas de agressões físicas e de furtos dos pertences, especialmente celulares e o dinheiro conquistado com o programa sexual” (ALVES, 2011, p. 07). De acordo com o Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, de todos os homicídios cometidos contra pessoas LGBT, 40% das vítimas era de travestis (2014, p. 48).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

            Diante de uma situação que expõe milhares de crianças, adolescentes e jovens LGBT, brancos/as e negros/as, a situações de violência cotidiana, é imperativo e urgente que a sociedade brasileira não se furte a responsabilidade de colocar em debate tais questões. Nesse processo é fundamental a participação da escola, que reveja suas diretrizes curriculares e projetos político-pedagógicos a fim de promover e garantir “um enfrentamento efetivo da homofobia/travestifobia/transfobia e dos processos de estigmatização” (PERES, 2009, p. 262).


REFERÊNCIAS

ALVES, Alan de Loiola. Travinha na quinta: a exploração sexual comercial de adolescentes travestis. Disponível em: <http://www.itaporanga.net/genero/3/10/14.pdf>. Acesso em 02 mai. 2014.
BENTO, Berenice Alves de Melo. O que é transexualidade? São Paulo: Brasiliense, 2008 (Primeiros Passos n. 328).
BRASIL, Secretaria de Direitos Humanos. Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília, 2014.
CECARELLI, Paulo Roberto. A invenção da homossexualidade. Revista Bagoas, Natal - RN, n. 2, 2008, 71-93.
CÉSAR, Maria Rita de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma Epistemologia, Educar em Revista, n. 35, set.- dez. 2009, p. 37 – 51.
FIGUERÊDO, Ticiane. Lésbicas: invisibilidades e violências. Posted on 28 ago. 2013. Disponível em: < http://blogueirasfeministas.com/2013/08/lesbicas-invisibilidades-e-violencias/>. Acesso em 26 abr. 2014.
GUIMARÃES, Anderson Fontes Passos. O desafio de “tornar-se” um homem homossexual: um exercício de construção de identidade. Revista Temas em Psicologia, v. 17, n. 2, 2009, p. 553 – 567.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogia da Sexualidade. In:____________. (Org). O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
NOVENA, Nadia Patrícia. A sexualidade na organização escolar: narrativas do silêncio. Tese (Doutorado em sociologia). Universidade Federal de Pernambuco, 2004.
PERES, William Siqueira. Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transexuais, transgêneros e a escola brasileira. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
SALES, Adriana; Leonardo Lemos de SOUZA. Narrativas de alunas travestis: representações e crenças sobre a escola. In: SOUZA, Leonardo Lemos de; SALGADO, Raquel Gonçalves (Org.). Infância e juventude no contexto brasileiro: gêneros e sexualidades. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2012.
SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em educação). Universidade Federal do Paraná, 2010.




[1] Licenciada em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História da Arte Pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil; Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), “por defender uma educação não-sexista, [...] além de utilizar o gênero feminino e masculino para nos referir às pessoas em geral, adotamos também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevemos seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]”.
[3] Afirma-se na Resolução Nº 1/99 do Conselho Federal de Psicologia: “Considerando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. A homossexualidade, assim como a heterossexualidade, são manifestações da sexualidade humana resultantes da "história da sexualidade" de cada indivíduo.
[4]Entendese homofobia como preconceito ou discriminação (e demais violências daí decorrentes) contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero presumidas. (Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, 2014, p. 10).
[5] Embora Sales e Souza especifiquem em sua pesquisa a questão da pessoa travesti, estendemos essa situação à mulheres e homens transexuais.
[6] Medo, nojo, vergonha de se relacionar com travestis e transexuais (PERES, 2009, p. 245).

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

REFLEXÕES A RESPEITO DE JOÃO PEDRO – O MULATO:
UM ARTISTA INVÍSIVEL

Por Megg Rayara Gomes de Oliveira[1]

Introdução[2]

A falta de registros não significa, em nosso entendimento, a inexistência de artistas plásticos negros/as em atividade no Paraná, seja antes ou depois do regime escravista. Afirmo que há uma intenção deliberada da história oficial do estado em silenciar a respeito da presença negra e suas contribuições para a formação de nossa cultura, especialmente nas áreas consideradas mais nobres, como as artes plásticas, por exemplo. Fatos protagonizados por personalidades negras são simplesmente ignorados ou tratados de maneira que pareçam meras exceções e de importância apenas para o grupo racial do qual fazem parte.
Ainda que seja difícil não é impossível fazer uma discussão a respeito da presença negra nas artes plásticas paranaenses, mesmo que algumas lacunas não sejam adequadamente preenchidas.
Nesse texto, ainda que de maneira pouco aprofundada, me proponho a refletir a respeito da presença negra na arte paranaense durante o século XIX, tema pouco discutido por nossos/as pesquisadores/as.
A escassez de publicações discutindo esse assunto me permite fazer algumas analogias com a arte produzida por artistas negros em outras regiões do país, já que encontro algumas semelhanças com a produção artística local, especialmente a arquitetura.

João Pedro – O Mulato

Durante o regime escravista a população negra exercia as mais variadas funções, tanto na cidade quanto na zona rural e dominavam técnicas de tecelagem e costura, teciam rendas finas de bilro, fabricavam roupas e objetos em couro, extraiam e fundiam o ouro na região de Curitiba, fabricavam e tocavam instrumentos musicais, conheciam técnicas de entalhe em madeira e também de arquitetura. A música e a dança faziam parte de suas celebrações religiosas e de suas festas, embora a Congada, o Batuque, a Dança de São Gonçalo e a Capoeira fossem “especialmente reprimidas” (Etelvina Maria de Castro TRINDADE; Maria Luiza ANDREAZZA, 2001, p. 27) em Curitiba e sofressem “constante assédio da polícia e das autoridades provinciais” (Eduardo Spiller PENA, 1990, p. 03), por estarem associadas à ociosidade que poderia conduzir à criminalidade.
Em relação à arquitetura, a contribuição mais conhecida dos povos africanos no Brasil está associada à introdução de técnicas construtivas que usavam o adobe e a taipa de mão, usadas tanto nas áreas rurais quanto urbanas. Associada à pedra essa tecnologia possibilitou a construção de prédios de grandes proporções em várias partes do país, principalmente de igrejas.
Aqui no Paraná, nas primeiras igrejas construídas, as informações que dispomos não fazem menção à utilização da taipa ou do adobe, mas afirmam que se trata da iniciativa da população negra. Em 1578, organizada em irmandade, construiu em Paranaguá a primeira igreja do país em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, “protetora das irmandades terceiras dos negros, que a ela pediam proteção e alívio dos sofrimentos” (Roberto CONDURU, 2007, p. 19).
Também em Paranaguá está localizada a Igreja de São Benedito dos Negros, primeira construída no sul do Brasil por pessoas negras escravizadas que declaravam devoção a esse santo. A falta de documentação dificulta precisar exatamente a data de sua construção, se por volta de 1600 a 1650 ou 1784.
A Igreja do Rosário, em Curitiba, inicialmente chamada de Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, também foi patrocinada, projetada e construída por pessoas negras em 1737. Construída em estilo colonial, era maior e mais moderna que a igreja matriz, bem mais simples, construída em madeira onde os/as negros/as não podiam entrar. Provavelmente foi a segunda igreja construída na capital paranaense, pois entre 1875 e 1893 serviu de igreja matriz enquanto a nova catedral era construída.
A falta de pesquisa nessa área me impede, por exemplo, de identificar quem eram os arquitetos, os mestres-pedreiros e os artistas que decoravam as igrejas patrocinadas pelas irmandades negras que atuaram em várias regiões, principalmente nas cidades litorâneas. Mesmo assim, é possível afirmar que os construtores negros dominavam técnicas variadas de construção, inclusive com pedras, considerada a mais moderna do período.
Uma aquarela do pintor francês Jean Baptiste Debret, datada de 1827, fornece uma pista preciosa.
A cena registra um homem negro trabalhando na construção de um edifício em Curitiba. O trabalhador é retratado ao lado de um alicerce em construção enquanto corta cuidadosamente um bloco de pedra, para que adquira a forma desejada, similar a outros dois que já passaram por esse processo.


FIGURA 1 – JEAN BAPTISTE DEBRET, CURITIBA, AQUARELA, 1827.

Esse trabalhador é certamente um especialista em construção feita com pedras, o que não era raro no período escravista. Um dos mais conhecidos era Joaquim Pinto de Oliveira Thebas, que desafiou arquitetos paulistas em 1766 ao construir a torre da antiga Igreja da Sé, que já estava pronta, sem alterar a fachada original. Em troca, Thebas recebeu sua alforria e o reconhecimento profissional que lhe permitiu usar o título de mestre-pedreiro (Carlos C. LEMOS, 2010, p. 106). Antes ainda, no início do século XVIII, em Recife, Manuel Ferreira Jácome, integrante da Irmandade de São Benedito dos Pretos, adquiria o status de arquiteto e juiz do ofício de pedreiro e assinava em 1728 sua obra mais conhecida: a Igreja de São Pedro dos Clérigos.
Aqui no Brasil, diferentemente de África, apenas os homens exerciam o ofício de construtores, uma característica que interferiu em partes na transposição da arquitetura africana, já que era responsabilidade das mulheres “a construção dos abrigos, sendo que cada uma tem o seu próprio abrigo” (Michelle SOMMER, 2005, p. 62). Outro fator apontado por Sommer (2005) diz respeito ao processo de marginalização da população negra, associada à criminalidade e a ociosidade, que resultou na exclusão de seu espaço social urbano. Além desses fatores a especulação imobiliária é um fator determinante para a não “manutenção dos territórios étnicos negros no meio urbano” (SOMMER, 2005, p. 19). Aqueles que resistem configuram-se como uma situação específica de alteridade caracterizada por relações sociais próprias e divergentes da sociedade envolvente (SOMMER, 2005, p. 20).
Outra questão discutida por Sommer diz respeito ao “processo de invisibilidade cultural sofrida pela população negra” (2005, p. 19), situação observada na história da Arte paranaense, envolvendo não apenas a arquitetura, mas as artes plásticas como um todo, sendo praticamente inexistentes os registros de artistas negros em atividade no estado até a década de 1960.
No entanto, essa história começa a ser escrita em 1806 em Curitiba por um artista negro: João Pedro – O mulato. Para Adalice Araújo (apud Aramis MILLARCH, 1986) ele é o primeiro “artista paranaense que se tem notícia”.

FIGURA 2 – JOÃO PEDRO – O MULATO, SINHAZINHA DO CAIRÊ DANDO PASSEIO PARA MISSA EM CURITIBA, AQUARELA, 1817.


Essa afirmação também foi feita pelo professor Newton Carneiro em 1975 no livro O Paraná e a caricatura, que ainda reivindica para João Pedro o título de primeiro caricaturista brasileiro, opinião compartilhada por Luiz Marques (2010) que atribui a João Pedro a responsabilidade de inaugurar no país a tradição do trabalho de ilustrador, notadamente a caricatura, que será muito popular entre vários artistas negros no início do século XIX. É ele ainda o primeiro artista a registrar cenas do cotidiano da cidade de Curitiba, bem como a presença de pessoas negras, tanto na capital quanto em Paranaguá.
Apesar da inegável importância da pesquisa de Carneiro (1975), pouca coisa mudou após sua publicação e o silêncio em torno da obra de João Pedro permaneceu.
É certo que o artista seria natural de Curitiba, porém nada se sabe a respeito de seu nascimento e de sua família ou de como se deu seu aprendizado (CARNEIRO, 1975). Marques (2010), no entanto, afirma que João Pedro era um “autodidata perdido entre Curitiba e Nossa Senhora do Desterro[3]” (p. 193), um “caso fortuito, verdadeiro acidente” (CARNEIRO, 1975, p. 28), já que a futura capital da província do Paraná era uma pequena vila naquele período e não dispunha de professores de desenho ou pintura e nenhum estabelecimento que comercializasse materiais artísticos. Essa situação leva-me a crer que João Pedro tivesse que se deslocar com frequência para centros mais urbanizados para que pudesse desenvolver seu trabalho.
Algumas de suas pinturas retratando cenas de Santa Catarina e do Rio de Janeiro, inclusive um baile na Corte de D. João VI, podem confirmar essa teoria. Nessa fase, João Pedro “abandona o sentido caricatural para conferir a sua produção intuito unicamente ilustrativo” (CARNEIRO, 1975, p. 25), servindo de inspiração a vários artistas viajantes que passaram pelo Rio de Janeiro, como Maximiliano de Neuwied, Tomaz Ender e Debret (CARNEIRO, 1975, P. 26).
Algumas de suas aquarelas foram localizadas em Portugal em 1966 e fizeram parte do acervo do Visconde de Vieiros. Provavelmente outras tenham sido encaminhadas a Europa, pois contava com o apoio de Antônio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, uma espécie de Ministro das Relações Exteriores da época e que também organizou a Missão Artística Francesa em 1816 a pedido do imperador.
Essa aproximação com personalidade tão ilustre atesta o reconhecimento de seu talento e a importância de sua obra por seus contemporâneos, porém o mesmo não aconteceu após a sua morte, uma vez que caiu no esquecimento.
Outros artistas negros em atividade nos séculos XVIII e XIX, em várias regiões do país, tiveram o mesmo destino e nomes como José Rabelo de Vasconcelos (PE), Manuel da Cunha (RJ), Mestre Valentim (RJ), Leandro Joaquim (RJ), Francisco Manuel das Chagas – O cabra (BA), Domingos Pereira Baião (BA), Raimundo da Costa e Silva (RJ), Padre Jesuíno do Monte Carmelo (SP), Veríssimo de Souza Freitas (BA), Francisco Xavier Carneiro (MG), José Theóphilo de Jesus (BA), Manuel Dias de Oliveira (RJ), Estevão Silva (RJ), os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa (RJ), Horácio Hora (SE), José Jacinto das Neves (MG), apenas para exemplificar, não aparecem na maioria dos livros de história da arte publicados no Brasil.
Do século XIX, além do trabalho de João Pedro, pouquíssimos registros da população negra no Paraná foram preservados, sendo encontrada em algumas aquarelas de Debret produzidas em 1827, retratando cenas de Paranaguá, Ponta Grossa, Curitiba e Castro e no trabalho do engenheiro inglês William Lloyd, que insere pessoas negras em suas paisagens de Curitiba e Antonina, pintadas em 1872. Além de paisagens, Lloyd fez alguns estudos pormenorizados de pessoas negras, provavelmente com a intenção de inseri-las em alguma de suas obras.

FIGURA 3 – WILLIAM LLOYD, ESTUDOS, AQUARELA, 1872

Carneiro diz que o silêncio completo em torno de João Pedro está associado à acirrada disputa entre os artistas portugueses e os componentes da Missão Lebreton “que praticamente marginalizou os elementos nacionais” (1975, p.27) no período posterior a proclamação da independência do Brasil.
Embora não discorde totalmente do autor no que diz respeito ao processo de marginalização dos “elementos nacionais”, acredito que o silêncio em torno de João Pedro e sua produção está associado à política de embranquecimento implantada no país logo após a proclamação da independência em 1822 e que tinha como meta eliminar do território nacional a população negra e sua cultura através do estímulo à imigração europeia (Sérgio Odilon NADALIN, 2000). Assim, “o Brasil que se queria formar, livre e de cidadãos brancos” (Andréa Santos PESSANHA, 2005, p.21) não teria espaço para os/as negros/as e/ou seus descendentes.
O silêncio é problematizado na pesquisa de Jorge Luiz Santana (2015) que discute a presença negra no Paraná e as suas diferentes formas de aparições, enfrentamentos e relações com o ser branco nestes espaços de poder e sociabilidades e questiona, ainda, sobre o porquê da inexistência, invisibilidade e o silenciamento dado aos feitos dos/as afro-paranaenses, não registrados e consequentemente legitimados por vários acadêmicos e pensadores brancos paranaenses como Romário Martins, Nestor Victor, Trajano Reis, Francisco Negrão. Historiadores e pensadores mais próximos da geração de Wilson Martins como Ruy Wachowicz e Pinheiro Machado consideram a presença negra diminuta, entretanto sem destacá-la em seus feitos (p.20).
Assim, a partir das reflexões de Nadalin (2000), Pessanha (2005) e Santana (2015) posso afirmar que por fazer parte da população indesejada pela sociedade brasileira João Pedro – O Mulato acabou esquecido por nossos/as pesquisadores/as brancos/as que demonstram um interesse muito maior pelos artistas de origem europeia ainda que tenham uma importância histórica menor, caso do alemão Guilherme Frederico Virmond radicado na cidade da Lapa em 1833 é descrito em algumas publicações como “o primeiro pintor a fixar residência no Paraná [...]. O primeiro a retratar a ‘gente paranaense’” (PARANÁ, 2006, p. 236), apesar dos 27 anos que o separa das primeiras obras assinadas por João Pedro na capital paranaense.
João Pedro trabalhou em Curitiba durante 11 anos, entre 1806 e 1817. Depois desse período não se tem nenhum registro a respeito de sua presença, seja no Paraná, Santa Catarina ou Rio de Janeiro.
Essa situação fez com que Newton Carneiro (1975) defendesse a tese de que teria morrido, caso tivesse fixado residência em outra cidade “sua presença certamente seria registrada” (CARNEIRO, 1975, p. 27).
            Há uma infinidade de lacunas a respeito da vida e obra de João Pedro – O Mulato que dificilmente serão preenchidas, inclusive pelo desinteresse do poder público em reconhecer sua importância para a história de Curitiba e também para a história da arte paranaense.
            Ainda que esse desinteresse contribua para a invisibilidade de João Pedro e de sua obra um fato não pode ser alterado: ele foi o primeiro artista plástico em atividade no Paraná, situação incômoda para um estado caracterizado pela exaltação do imigrante europeu e pelo esforço contínuo em apagar de sua história as contribuições das populações negras e indígenas.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Newton. O Paraná e a caricatura. Curitiba: Universidade Federal do Paraná e Fundação Teatro Guairá, 1975. (Coleção Memória Cultural do Paraná).
CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C / arte, 2007.
DEBRET, Jean Baptiste. Curitiba, aquarela, 1827. Fonte: BINI, Fernando. O Paraná Tradicional. In: PARANÁ, Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte do. Tradição/Contradição. Curitiba: 1986, p. 39 – 58. Catálogo de exposição, p. 47.
LEMOS, Carlos C. Thebas. ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010.
LLOYD, William. Estudos, aquarela, 1872. Disponível em: . Acesso em: 07/02/2012.
MARQUES, Luiz. O século XIX e o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010.
NADALIN, Sérgio Odilon. Paraná: ocupação do território, populações e migrações. Curitiba: SEED, 2001.
O MULATO, João Pedro. Sinhazinha do Cairê dando passeio para a missa de Coritiba, 1817. Fonte: MARQUES, Luiz. O século XIX e o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010, p. 195.
PARANÁ, Secretaria de Estado do Planejamento. Arte: ensino médio. Curitiba: SEED-PR, 2006a. – 336 p.
PESSANHA, Andréa Santos. Em nome do progresso. Revista Nossa História, São Paulo, n. 24, p. 20 – 22, out. 2005.
SANTANA, Jorge Luiz. Adelino Alves da Silva: presença negra paranaense em espaços legítimos de poder. Monografia (Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais). Universidade Federal do Paraná, 2015.

SOMMER, Michelle. Territorialidade negra urbana: a morfologia sócio-espacial dos núcleos negros urbanos segundo a herança histórica comum. Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
TRINDADE, Etelvina Maria de Castro; ANDREAZZA, Maria Luiza. Cultura e educação do Paraná. Curitiba: SEED, 2001.



[1] Licenciada em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História da Arte Pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil; Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Esse texto é inspirado em um capítulo da minha dissertação de mestrado “Arte e Silêncio: a arte africana e afro-brasileira nas Diretrizes Curriculares Estaduais e no Livro Didático Público de Arte do Paraná” defendida em 2012.
[3] Nossa Senhora do Desterro era o antigo nome da cidade de Florianópolis.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Aos Erês e às crianças, o CARURU.

Foto de Jorge Santana.
Aos Erês e às crianças, o CARURU. 


















Foto: Raquel Monteiro

Por: Jorge Santana


Nas casas dos seguidores e simpatizantes das religiões de matriz africana e afro-brasileira, são oferendados e servidos um 'complexo' prato com comidas oferecidas às divindades da natureza, aos Orixás. No prato, vão desde caruru, vatapá, abará, xinxim de galinha, feijão preto, feijão fradinho, arroz de leite, farofa de azeite de dendê, farofa de mel, inhame, flôr de omolu, pedaços de cana, pedaços de rapadura, etc., e para beber aruá. Para que o evento aconteça, existe uma mobilização da comunidade. A ritualística vai desde a organização para as compras dos produtos e alimentos, passa pelo metodológico preparo de cozinhar pensando sempre nas divindades. Continuam as atividades com o serviço de distribuição dos “pratos”. Cada pessoa servida é brindada com um prato de barro, prato de Nagé, como lembrança, O tamanho da celebração e festa varia de dezenas à milhares de pessoas.

Essa manifestação sagrada, religiosa e cultural agrega vários elementos das cosmovisão africana e das suas mitologias, expressões, práticas e modos de fazer, tradições, resistência ao colonizador, vida em comunidade, respeito à ancestralidade etc. Toda a comunidade, em regime de mutirão, participa de alguma forma, as atividades duram mais que 72 horas, as crianças sempre presentes. O evento tiveram origem nas formas distintas de convivências dos diversos povos africanos que habitaram na Baia de Todos os Santos, e ressignificaram ou não, os seus modos de vida e cultura. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MACHADO, Vanda. Tradição Oral e Vida Africana e Afro-Brasileira. In.: Literatura afro-brasileira Orgs.: LIMA, Maria Nazaré et SOUZA, Florentina. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
VERGER, Pierre. Notícias da Bahia – 1850. r. 2ª ed. Corrupio. Salvador. 1999.

sábado, 16 de maio de 2015

CARTA DE REPÚDIO AO MARACATU AROEIRA

CARTA DE REPÚDIO AO MARACATU AROEIRA

           Por meio desta carta tornamos público o nosso repúdio à situação ocorrida no dia 25 de abril, durante a apresentação do Grupo Maracatu Aroeira, na Rua São Francisco, em Curitiba, quando um dos integrantes do grupo (um homem branco) utilizou de violência contra uma mulher negra, dando um “leve” toque com uma das baquetas, parte de um instrumento de percussão, com o argumento de que ela estava “atravessando” a apresentação. Posteriormente ao início da discussão que se gerou por causa disso, outro membro do grupo (uma mulher branca) utilizou um discurso elitista e autoritário proferido aos gritos de: “você sabe com quem está falando?”; “faz dez anos que estudo o Maracatu”, “sou branca de alma negra”; dentre outras colocações.
          “Antigamente eles exploravam nossa mão de obra, nosso trabalho físico, agora eles exploram nossas ideias, a nossa cultura”. (Josias da Vila Monarca)[1]. Essa frase aciona uma indagação que nós negras/os fazemos toda a vez que situações como essa acontecem, rememorando uma espécie de apropriação indevida, em que uma mulher negra é deslegitimada por pessoas brancas sobre um processo cultural que faz parte da cultura afro-brasileira. Ser questionada sobre “atravessar” uma apresentação não deveria gerar agressões físicas e verbais com cunho racista e fundamentado em um discurso de autoridade.
           De alguma forma, essa prática nos faz refletir sobre o perfil dos membros do grupo: em sua maioria universitárias/os, brancas/os e que se reúnem em prol da valorização de uma manifestação cultural tão rica para a sociedade em geral, sobretudo para sociedades como a curitibana que omite sua negritude. Mas é justamente aí que se revela o problema: ao propor a valorização de uma cultura, baseada em critérios de organização para não se “atravessar”, e o ataque a uma mulher negra que “atravessa” sua apresentação, onde ficam os princípios de valorização da cultura afro-brasileira? A teoria, em que brancas/os consideram-se “de alma negra” não se aplica à prática? O que é ser uma mulher negra, para o Maracatu Aroeira? O que é ser uma pessoa negra, para o Maracatu Aroeira?
           É ser branca/o (“de alma negra”) mas agredir uma mulher negra (de alma negra)?
           É ser universitária/o (intelectual pesquisadora/or de Maracatu) e não ter condições acadêmicas de argumentar em favor do respeito a sua apresentação?
           Esse tipo de apropriação afasta o Maracatu de seu lugar de origem que é a periferia e os bairros das cidades, espaços esses compartilhados sobretudo por pessoas negras. Um dos possíveis argumentos contrários a esse questionamento poderia ser o fato de que o Maracatu é aberto para todas/as, negras/os e não negras/os, e caso o perfil desse grupo não represente em sua composição a diversidade étnico-racial que se espera de grupos de manifestações culturais afro-brasileiros, é porque negras/os não querem.
           Argumentar que a população negra não se insira no Maracatu “porque não quer”, além de representar uma estratégia confortável de defesa, revela-se simplista, considerando os espaços sociais ocupados por negras/os de periferia e o grupo em questão. Da mesma maneira, argumentar que a baixa representatividade de negras/os no Maracatu deve-se à ausência destes em Curitiba é retroalimentar um imaginário equivocado e racista de que a capital do Paraná é a Europa brasileira, não só pelas características climáticas, mas também por sua população. Tais argumentos apresentam-se inconsistentes e incoerentes diante dos dados apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que informa que somos 19,7%[2] da população curitibana.
           Reconhecemos que o Maracatu é extremamente necessário quando este faz conexão de fato com a cultura afro-brasileira como forma de resistência, como forma de resgatar o histórico de lutas e conquistas, quando este é direcionado ao empoderamento da população negra. Lembramos ainda que a apropriação cultural foi uma política que buscou ainda buscar apagar traços da cultura negra, tornando-os símbolos nacionais (samba, feijoada, capoeira, etc.) na tentativa de desmobilizar o fortalecimento da identidade da população negra e marginalizá-la ainda mais.
           Com esse manifesto exigimos a devida atenção do grupo Maracatu Aroeira quanto a questões ligadas à apropriação cultural, ações racistas e todos os desdobramentos e implicações que estes apresentam na vida de negras e negros.
           Desta forma, aguardamos uma resposta do grupo quanto ao ocorrido, uma vez que não se trata apenas do uso de algo pertencente à cultura negra, mas também de respeito a mulheres e homens negros e demais pessoas que se encontravam no momento da apresentação. Ficamos a imaginar quantas vezes essa cena de desrespeito pode ter ocorrido anteriormente pelo grupo ou por membros dele, uma vez que a cultura negra é tão rica, bela e cheia de significados que não deveria ser representada da forma como ocorreu na data em questão.

Assinam essa carta:

Cintia Ribeiro (Ciências Sociais UFPR)
Alan Felipe dos Santos (Ciências Sociais UFPR)
Nuno José (Direito UFPR)
Eduardo José de Araújo (História UFPR)
Brinsan N’tchala (Direito Unicuritiba)
Priscila Souza (Socióloga - UFPR)
Natália Luiza (Ciências Sociais UFPR)
Margoth Mendes da Cruz (Psicologia UFPR)
Daiane da Silva Vasconcelos (Psicologia UFPR)
Coletivo Sou Neguinh@ (UFPR)
Jorge Santana (Historiador - UFPR)
Watena Ferreira N’tchala (Engenharia Mecânica UFPR)
Angélica Roxinsky de Carvalho (Ciências Sociais UFPR)
Andressa do Rosário Damaceno (Gestão Ambiental UFPR Litoral)
Elisama Kissenia de Souza (Agronomia UFPR)
Kesia Samay de Souza (Engenharia Florestal UFPR)
Júlio Sérgio da Silva Monteiro (Educador Musical - UFPR)
Camila Maia (Ciências Sociais UFPR)
Débora Fidelis (Ciências Sociais UFPR)
Débora Cristina de Araújo (Doutora em Educação UFPR)
Otavio Luiz Costa (Ciências Sociais UFPR)





[1] CARVALHO, Ernesto Ignacio de. Diálogo de negro, monólogo de branco: transformações e apropriações musicais no maracatu de baque virado. Recife, 2007.
[2]http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/197-da-populacao-de-curitiba-sao-negros-ou-pardos/31360