quinta-feira, 20 de março de 2014


Quatro razões para assistir 12 anos de escravidão



A primeira é que se trata de uma história fantástica, muito bem narrada filmicamente. Não basta fazer um filme, ter bons intérpretes, um bom argumento: é preciso contar bem uma história, qualquer história. O filme consegue fazer isto muitíssimo bem.

Em segundo lugar, é um narrativa que te propicia um mergulho na atmosfera da escravidão. De qualquer escravidão. A natureza do escravismo se apresenta diante de nossos olhos mediante a exploração da densidade dos personagens. Senhores, escravos, escravas, feitores, senhoras, comerciantes, traficantes, escravizadores americanos, mães, pais, amantes, e todos os outros personagens aparecem fortemente marcados pela natureza do escravismo. Ninguém fica imune à sua crueldade, a ideia de que seres humanos são propriedade de outrem, à sua violência. 

E diferentemente da escravidão antiga, a moderna, racializada, constrange, humilha e oprime um grupo imenso de seres humanos urdidos pelo fato de serem negros.  

Em terceiro lugar, como o filme é baseado num livro publicado em 1853, um livro escrito pelo homem livre vendido como escravo num país imenso como os Estados Unidos, um país onde a escravidão existia em Estados específicos, e não em todos eles, a sociedade escravista aparece como toda e qualquer sociedade humana, isto é, como toda configuração social formada por seres humanos em qualquer lugar do planeta e em qualquer época. Hierarquizada de alto ao baixo, do mundo de senhores e brancos não proprietários ao mundo dos escravos e dos negros livres. Brancos tinham sua própria hierarquia e relações de poder, e os negros também tinham as deles, na qual vários fatores intervinham para que houvesse maior ou menor potencial de retenção de poder concentrado por certos indivíduos.   

Em quarto e último lugar, se trata de uma história vivida por um homem livre, letrado, que foi escravo por pouco mais de uma década - um tempo muito longo para qualquer ser humano de sua condição viver no cativeiro. Ele conheceu dentro do escravismo, na condição de cativo, o que é viver no patamar mais baixo daquela sociedade. Negando ser quem era para sobreviver, o personagem central, um homem de carne e osso, músico, situava-se num estrato mais elevado de sua própria configuração formada pelos negros e, ao mesmo tempo, pelos escravos, considerando que a racialização marcava toda a sociedade, e justamente por isso ele foi escravizado. No entanto, ele escreveu, pois sabia como fazê-lo, e nos legou esta história fantástica. Vejam o filme. Vou procurar o livro. Assistam, assistam   


Texto de Luiz Geraldo Silva, Doutor em História Social na Universidade de São Paulo. É professor visitante da Universidad Pablo de Olavide de Sevilha (desde 2007) e da Universidad de Murcia (desde 2009). Desde 1993 é Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia. Pesquisa principalmente os seguintes temas: vida social e aspectos religiosos, políticos e étnicos referentes à população escrava e de negros livres na América portuguesa e no Brasil imperial.

Em tempo: 

O filme ganhou o Oscar de melhor filme na edição de 2014, sendo o primeiro filme de um diretor negro a ganhar o Oscar. 

O livro de Solomon Northup foi lançado em fevereiro pelas editoras Seoman com 232 págs, por R$19,90, e a edição da Penguin-Companhia das Letras de 264 págs. que traz o texto introdutório original e um posfácio de Henry Louis Gates Jr. que além de escritor, editor, acadêmmicoe crítico literário, foi o primeiro negro americano a receber o Andrew W. Mellon Foundation Fellowship.