quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

REFLEXÕES A RESPEITO DE JOÃO PEDRO – O MULATO:
UM ARTISTA INVÍSIVEL

Por Megg Rayara Gomes de Oliveira[1]

Introdução[2]

A falta de registros não significa, em nosso entendimento, a inexistência de artistas plásticos negros/as em atividade no Paraná, seja antes ou depois do regime escravista. Afirmo que há uma intenção deliberada da história oficial do estado em silenciar a respeito da presença negra e suas contribuições para a formação de nossa cultura, especialmente nas áreas consideradas mais nobres, como as artes plásticas, por exemplo. Fatos protagonizados por personalidades negras são simplesmente ignorados ou tratados de maneira que pareçam meras exceções e de importância apenas para o grupo racial do qual fazem parte.
Ainda que seja difícil não é impossível fazer uma discussão a respeito da presença negra nas artes plásticas paranaenses, mesmo que algumas lacunas não sejam adequadamente preenchidas.
Nesse texto, ainda que de maneira pouco aprofundada, me proponho a refletir a respeito da presença negra na arte paranaense durante o século XIX, tema pouco discutido por nossos/as pesquisadores/as.
A escassez de publicações discutindo esse assunto me permite fazer algumas analogias com a arte produzida por artistas negros em outras regiões do país, já que encontro algumas semelhanças com a produção artística local, especialmente a arquitetura.

João Pedro – O Mulato

Durante o regime escravista a população negra exercia as mais variadas funções, tanto na cidade quanto na zona rural e dominavam técnicas de tecelagem e costura, teciam rendas finas de bilro, fabricavam roupas e objetos em couro, extraiam e fundiam o ouro na região de Curitiba, fabricavam e tocavam instrumentos musicais, conheciam técnicas de entalhe em madeira e também de arquitetura. A música e a dança faziam parte de suas celebrações religiosas e de suas festas, embora a Congada, o Batuque, a Dança de São Gonçalo e a Capoeira fossem “especialmente reprimidas” (Etelvina Maria de Castro TRINDADE; Maria Luiza ANDREAZZA, 2001, p. 27) em Curitiba e sofressem “constante assédio da polícia e das autoridades provinciais” (Eduardo Spiller PENA, 1990, p. 03), por estarem associadas à ociosidade que poderia conduzir à criminalidade.
Em relação à arquitetura, a contribuição mais conhecida dos povos africanos no Brasil está associada à introdução de técnicas construtivas que usavam o adobe e a taipa de mão, usadas tanto nas áreas rurais quanto urbanas. Associada à pedra essa tecnologia possibilitou a construção de prédios de grandes proporções em várias partes do país, principalmente de igrejas.
Aqui no Paraná, nas primeiras igrejas construídas, as informações que dispomos não fazem menção à utilização da taipa ou do adobe, mas afirmam que se trata da iniciativa da população negra. Em 1578, organizada em irmandade, construiu em Paranaguá a primeira igreja do país em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, “protetora das irmandades terceiras dos negros, que a ela pediam proteção e alívio dos sofrimentos” (Roberto CONDURU, 2007, p. 19).
Também em Paranaguá está localizada a Igreja de São Benedito dos Negros, primeira construída no sul do Brasil por pessoas negras escravizadas que declaravam devoção a esse santo. A falta de documentação dificulta precisar exatamente a data de sua construção, se por volta de 1600 a 1650 ou 1784.
A Igreja do Rosário, em Curitiba, inicialmente chamada de Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, também foi patrocinada, projetada e construída por pessoas negras em 1737. Construída em estilo colonial, era maior e mais moderna que a igreja matriz, bem mais simples, construída em madeira onde os/as negros/as não podiam entrar. Provavelmente foi a segunda igreja construída na capital paranaense, pois entre 1875 e 1893 serviu de igreja matriz enquanto a nova catedral era construída.
A falta de pesquisa nessa área me impede, por exemplo, de identificar quem eram os arquitetos, os mestres-pedreiros e os artistas que decoravam as igrejas patrocinadas pelas irmandades negras que atuaram em várias regiões, principalmente nas cidades litorâneas. Mesmo assim, é possível afirmar que os construtores negros dominavam técnicas variadas de construção, inclusive com pedras, considerada a mais moderna do período.
Uma aquarela do pintor francês Jean Baptiste Debret, datada de 1827, fornece uma pista preciosa.
A cena registra um homem negro trabalhando na construção de um edifício em Curitiba. O trabalhador é retratado ao lado de um alicerce em construção enquanto corta cuidadosamente um bloco de pedra, para que adquira a forma desejada, similar a outros dois que já passaram por esse processo.


FIGURA 1 – JEAN BAPTISTE DEBRET, CURITIBA, AQUARELA, 1827.

Esse trabalhador é certamente um especialista em construção feita com pedras, o que não era raro no período escravista. Um dos mais conhecidos era Joaquim Pinto de Oliveira Thebas, que desafiou arquitetos paulistas em 1766 ao construir a torre da antiga Igreja da Sé, que já estava pronta, sem alterar a fachada original. Em troca, Thebas recebeu sua alforria e o reconhecimento profissional que lhe permitiu usar o título de mestre-pedreiro (Carlos C. LEMOS, 2010, p. 106). Antes ainda, no início do século XVIII, em Recife, Manuel Ferreira Jácome, integrante da Irmandade de São Benedito dos Pretos, adquiria o status de arquiteto e juiz do ofício de pedreiro e assinava em 1728 sua obra mais conhecida: a Igreja de São Pedro dos Clérigos.
Aqui no Brasil, diferentemente de África, apenas os homens exerciam o ofício de construtores, uma característica que interferiu em partes na transposição da arquitetura africana, já que era responsabilidade das mulheres “a construção dos abrigos, sendo que cada uma tem o seu próprio abrigo” (Michelle SOMMER, 2005, p. 62). Outro fator apontado por Sommer (2005) diz respeito ao processo de marginalização da população negra, associada à criminalidade e a ociosidade, que resultou na exclusão de seu espaço social urbano. Além desses fatores a especulação imobiliária é um fator determinante para a não “manutenção dos territórios étnicos negros no meio urbano” (SOMMER, 2005, p. 19). Aqueles que resistem configuram-se como uma situação específica de alteridade caracterizada por relações sociais próprias e divergentes da sociedade envolvente (SOMMER, 2005, p. 20).
Outra questão discutida por Sommer diz respeito ao “processo de invisibilidade cultural sofrida pela população negra” (2005, p. 19), situação observada na história da Arte paranaense, envolvendo não apenas a arquitetura, mas as artes plásticas como um todo, sendo praticamente inexistentes os registros de artistas negros em atividade no estado até a década de 1960.
No entanto, essa história começa a ser escrita em 1806 em Curitiba por um artista negro: João Pedro – O mulato. Para Adalice Araújo (apud Aramis MILLARCH, 1986) ele é o primeiro “artista paranaense que se tem notícia”.

FIGURA 2 – JOÃO PEDRO – O MULATO, SINHAZINHA DO CAIRÊ DANDO PASSEIO PARA MISSA EM CURITIBA, AQUARELA, 1817.


Essa afirmação também foi feita pelo professor Newton Carneiro em 1975 no livro O Paraná e a caricatura, que ainda reivindica para João Pedro o título de primeiro caricaturista brasileiro, opinião compartilhada por Luiz Marques (2010) que atribui a João Pedro a responsabilidade de inaugurar no país a tradição do trabalho de ilustrador, notadamente a caricatura, que será muito popular entre vários artistas negros no início do século XIX. É ele ainda o primeiro artista a registrar cenas do cotidiano da cidade de Curitiba, bem como a presença de pessoas negras, tanto na capital quanto em Paranaguá.
Apesar da inegável importância da pesquisa de Carneiro (1975), pouca coisa mudou após sua publicação e o silêncio em torno da obra de João Pedro permaneceu.
É certo que o artista seria natural de Curitiba, porém nada se sabe a respeito de seu nascimento e de sua família ou de como se deu seu aprendizado (CARNEIRO, 1975). Marques (2010), no entanto, afirma que João Pedro era um “autodidata perdido entre Curitiba e Nossa Senhora do Desterro[3]” (p. 193), um “caso fortuito, verdadeiro acidente” (CARNEIRO, 1975, p. 28), já que a futura capital da província do Paraná era uma pequena vila naquele período e não dispunha de professores de desenho ou pintura e nenhum estabelecimento que comercializasse materiais artísticos. Essa situação leva-me a crer que João Pedro tivesse que se deslocar com frequência para centros mais urbanizados para que pudesse desenvolver seu trabalho.
Algumas de suas pinturas retratando cenas de Santa Catarina e do Rio de Janeiro, inclusive um baile na Corte de D. João VI, podem confirmar essa teoria. Nessa fase, João Pedro “abandona o sentido caricatural para conferir a sua produção intuito unicamente ilustrativo” (CARNEIRO, 1975, p. 25), servindo de inspiração a vários artistas viajantes que passaram pelo Rio de Janeiro, como Maximiliano de Neuwied, Tomaz Ender e Debret (CARNEIRO, 1975, P. 26).
Algumas de suas aquarelas foram localizadas em Portugal em 1966 e fizeram parte do acervo do Visconde de Vieiros. Provavelmente outras tenham sido encaminhadas a Europa, pois contava com o apoio de Antônio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, uma espécie de Ministro das Relações Exteriores da época e que também organizou a Missão Artística Francesa em 1816 a pedido do imperador.
Essa aproximação com personalidade tão ilustre atesta o reconhecimento de seu talento e a importância de sua obra por seus contemporâneos, porém o mesmo não aconteceu após a sua morte, uma vez que caiu no esquecimento.
Outros artistas negros em atividade nos séculos XVIII e XIX, em várias regiões do país, tiveram o mesmo destino e nomes como José Rabelo de Vasconcelos (PE), Manuel da Cunha (RJ), Mestre Valentim (RJ), Leandro Joaquim (RJ), Francisco Manuel das Chagas – O cabra (BA), Domingos Pereira Baião (BA), Raimundo da Costa e Silva (RJ), Padre Jesuíno do Monte Carmelo (SP), Veríssimo de Souza Freitas (BA), Francisco Xavier Carneiro (MG), José Theóphilo de Jesus (BA), Manuel Dias de Oliveira (RJ), Estevão Silva (RJ), os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa (RJ), Horácio Hora (SE), José Jacinto das Neves (MG), apenas para exemplificar, não aparecem na maioria dos livros de história da arte publicados no Brasil.
Do século XIX, além do trabalho de João Pedro, pouquíssimos registros da população negra no Paraná foram preservados, sendo encontrada em algumas aquarelas de Debret produzidas em 1827, retratando cenas de Paranaguá, Ponta Grossa, Curitiba e Castro e no trabalho do engenheiro inglês William Lloyd, que insere pessoas negras em suas paisagens de Curitiba e Antonina, pintadas em 1872. Além de paisagens, Lloyd fez alguns estudos pormenorizados de pessoas negras, provavelmente com a intenção de inseri-las em alguma de suas obras.

FIGURA 3 – WILLIAM LLOYD, ESTUDOS, AQUARELA, 1872

Carneiro diz que o silêncio completo em torno de João Pedro está associado à acirrada disputa entre os artistas portugueses e os componentes da Missão Lebreton “que praticamente marginalizou os elementos nacionais” (1975, p.27) no período posterior a proclamação da independência do Brasil.
Embora não discorde totalmente do autor no que diz respeito ao processo de marginalização dos “elementos nacionais”, acredito que o silêncio em torno de João Pedro e sua produção está associado à política de embranquecimento implantada no país logo após a proclamação da independência em 1822 e que tinha como meta eliminar do território nacional a população negra e sua cultura através do estímulo à imigração europeia (Sérgio Odilon NADALIN, 2000). Assim, “o Brasil que se queria formar, livre e de cidadãos brancos” (Andréa Santos PESSANHA, 2005, p.21) não teria espaço para os/as negros/as e/ou seus descendentes.
O silêncio é problematizado na pesquisa de Jorge Luiz Santana (2015) que discute a presença negra no Paraná e as suas diferentes formas de aparições, enfrentamentos e relações com o ser branco nestes espaços de poder e sociabilidades e questiona, ainda, sobre o porquê da inexistência, invisibilidade e o silenciamento dado aos feitos dos/as afro-paranaenses, não registrados e consequentemente legitimados por vários acadêmicos e pensadores brancos paranaenses como Romário Martins, Nestor Victor, Trajano Reis, Francisco Negrão. Historiadores e pensadores mais próximos da geração de Wilson Martins como Ruy Wachowicz e Pinheiro Machado consideram a presença negra diminuta, entretanto sem destacá-la em seus feitos (p.20).
Assim, a partir das reflexões de Nadalin (2000), Pessanha (2005) e Santana (2015) posso afirmar que por fazer parte da população indesejada pela sociedade brasileira João Pedro – O Mulato acabou esquecido por nossos/as pesquisadores/as brancos/as que demonstram um interesse muito maior pelos artistas de origem europeia ainda que tenham uma importância histórica menor, caso do alemão Guilherme Frederico Virmond radicado na cidade da Lapa em 1833 é descrito em algumas publicações como “o primeiro pintor a fixar residência no Paraná [...]. O primeiro a retratar a ‘gente paranaense’” (PARANÁ, 2006, p. 236), apesar dos 27 anos que o separa das primeiras obras assinadas por João Pedro na capital paranaense.
João Pedro trabalhou em Curitiba durante 11 anos, entre 1806 e 1817. Depois desse período não se tem nenhum registro a respeito de sua presença, seja no Paraná, Santa Catarina ou Rio de Janeiro.
Essa situação fez com que Newton Carneiro (1975) defendesse a tese de que teria morrido, caso tivesse fixado residência em outra cidade “sua presença certamente seria registrada” (CARNEIRO, 1975, p. 27).
            Há uma infinidade de lacunas a respeito da vida e obra de João Pedro – O Mulato que dificilmente serão preenchidas, inclusive pelo desinteresse do poder público em reconhecer sua importância para a história de Curitiba e também para a história da arte paranaense.
            Ainda que esse desinteresse contribua para a invisibilidade de João Pedro e de sua obra um fato não pode ser alterado: ele foi o primeiro artista plástico em atividade no Paraná, situação incômoda para um estado caracterizado pela exaltação do imigrante europeu e pelo esforço contínuo em apagar de sua história as contribuições das populações negras e indígenas.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Newton. O Paraná e a caricatura. Curitiba: Universidade Federal do Paraná e Fundação Teatro Guairá, 1975. (Coleção Memória Cultural do Paraná).
CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C / arte, 2007.
DEBRET, Jean Baptiste. Curitiba, aquarela, 1827. Fonte: BINI, Fernando. O Paraná Tradicional. In: PARANÁ, Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte do. Tradição/Contradição. Curitiba: 1986, p. 39 – 58. Catálogo de exposição, p. 47.
LEMOS, Carlos C. Thebas. ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010.
LLOYD, William. Estudos, aquarela, 1872. Disponível em: . Acesso em: 07/02/2012.
MARQUES, Luiz. O século XIX e o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010.
NADALIN, Sérgio Odilon. Paraná: ocupação do território, populações e migrações. Curitiba: SEED, 2001.
O MULATO, João Pedro. Sinhazinha do Cairê dando passeio para a missa de Coritiba, 1817. Fonte: MARQUES, Luiz. O século XIX e o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. v. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010, p. 195.
PARANÁ, Secretaria de Estado do Planejamento. Arte: ensino médio. Curitiba: SEED-PR, 2006a. – 336 p.
PESSANHA, Andréa Santos. Em nome do progresso. Revista Nossa História, São Paulo, n. 24, p. 20 – 22, out. 2005.
SANTANA, Jorge Luiz. Adelino Alves da Silva: presença negra paranaense em espaços legítimos de poder. Monografia (Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais). Universidade Federal do Paraná, 2015.

SOMMER, Michelle. Territorialidade negra urbana: a morfologia sócio-espacial dos núcleos negros urbanos segundo a herança histórica comum. Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
TRINDADE, Etelvina Maria de Castro; ANDREAZZA, Maria Luiza. Cultura e educação do Paraná. Curitiba: SEED, 2001.



[1] Licenciada em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História da Arte Pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil; Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
[2] Esse texto é inspirado em um capítulo da minha dissertação de mestrado “Arte e Silêncio: a arte africana e afro-brasileira nas Diretrizes Curriculares Estaduais e no Livro Didático Público de Arte do Paraná” defendida em 2012.
[3] Nossa Senhora do Desterro era o antigo nome da cidade de Florianópolis.